quinta-feira, 16 de janeiro de 2014

Sim, mãe


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Notícia: Jovem que morreu para salvar escola será condecorado no Paquistão
Fonte: G1
Data: 13/01/14
Nível do conto: 3
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Eram apenas dois meses de serviços prestados pelo programa Médicos sem Fronteira em Khyber Pajtunjua, mas Eliane já tinha visto muita coisa. Tanto a situação do local como a forma que refugiados afegãos chegavam por ali eram de impressionar qualquer pessoa. Ainda assim, ela se mantinha firme.

Eliane é médica há mais de dez anos e sempre trabalhou em hospitais de ponta, com todo o tipo de recurso necessário para exercer sua profissão. Agora, ela encarava um cenário precário, sem recursos e conforto, mas sempre dedicada ao máximo.

Nenhum dos casos que presenciava deixada Eliane desanimada. Muito menos as desconfortáveis viagens para transferir pacientes até Peshawar em um calor insuportável. Ela estava firme e focada em sua missão e pretendia ficar no Paquistão por um bom tempo.

Os planos só mudaram quando um acontecimento abalou suas estruturas. Não se comentava outra coisa naquele dia a não ser a morte de um jovem de 15 anos que impediu um homem bomba de causar uma catástrofe explodir uma escola em Ibrahimzai. O garoto tornou-se um herói.

Ao ver a foto do jovem nos jornais, Eliane tremeu. Ele lembrava muito seu filho Jorge. Até a idade era a mesma. A diferença era que Jorge vivia no conforto de um bairro nobre em Búzios.

Foram dois meses de muito esforço para não pensar no garoto, no Brasil e no vazio causado por um divórcio conturbado. Eliane sentia mágoa do filho até então. Agora se culpava: como poderia nutrir um sentimento tão nocivo por alguém a quem deu a vida? Egoísmo? Incompreensão? Talvez tudo isso.

Ela sempre esteve muito ocupada e longe de casa, mas seu ex-marido também não era o pai mais presente que um garoto poderia ter. Mesmo assim, Jorge preferiu ficar com o pai após o divórcio. Sua decisão foi muito rápida, sem qualquer sombra de dúvidas. Essa certeza toda foi o que mais magoou Eliane. Como o garoto tinha sido capaz de nem considerar viver com ela?

Consumida por essa tristeza, a única saída encontrada foi deixar o país e se dedicar exclusivamente ao programa internacional. A despedida de Jorge foi seca e formal, mas Eliane havia achado melhor assim, pois não corria o risco de se arrepender da partida. A dureza só se dissolveu dois meses depois, quando a morte do jovem tocou o coração da médica. Mas ainda era tempo de reverter a situação? Eliane acreditava que sim.

- Preciso ver meu filho. Preciso ir embora daqui!


Imediatamente, Eliane comunicou ao seu superior que iria deixar o Paquistão e retornar ao seu país por ter assuntos pendentes por lá. Sem entender a razão repentina de sua desistência, o doutor Richter ainda tentou convencê-la a ficar. Ela desabafou e explicou as razões da sua partida para o doutor Richter, que ficou em silêncio por alguns segundos e disse:

- É uma pena ver você partir, doutora. Mas eu não vou te impedir. Essa missão não é pra você. Você não está aqui por desejo, mas para fugir da sua realidade. Ainda assim fico muito feliz de ter contado com a sua ajuda. E fico feliz também por ver que ao chegar aqui você se reencontrou.

- Com certeza doutor, muito obrigada!

Ao chegar no Brasil, contemplar o apartamento vazio era mais dolorido do que a visão de sua rotina no Paquistão. Imaginava poderia encontrar Jorge em seu quarto navegando na internet ou lendo algum livro, mas o cômodo já não tinha nenhum móvel.

Eliane cogitou a possibilidade de pegar o carro e ir ao encontro de Jorge, mas a viagem e a diferença e fuso horário fizeram uma bagunça em seu organismo. Por ora, ela achou melhor tomar um calmante e dormir o máximo que pudesse.

No outro dia, acordou disposta e mais calma. Tomou seu banho e um café da manhã bem reforçado. Foi até a casa do ex-marido, que ficava bem perto da praia. Ao chegar lá, seu ex-companheiro estava na varanda na companhia de uma mulher que aparentava ser bem mais jovem. Ele fechou a cara e se levantou. Eliane o interrompeu antes que a situação piorasse.

- Calma Jair, eu vim em paz, não se preocupe. Não quero te atrapalhar, só precisava falar com o Jorge. Me desculpe chegar sem avisar mas é muito importante.

- O Jorge tá em Geribá.

- Eu vou até lá. Obrigada... e me desculpa mais uma vez.

- Mas tá estranha, hein...

Eliane foi se afastando e percebeu que Jair a observava bastante desconfiado. A sua acompanhante se aproximou e o abraçou por trás. Eles cochichavam e pareciam esperar que Eliane fosse logo embora.

A praia não estava tão cheia. De longe foi possível ver Jorge sentado sozinho contemplando o mar. Eliane chorou ao ver o filho, em parte pela saudade que sentia, mas também pelo tempo que desperdiçou cultivando um sentimento ruim em relação a ele. Naquele momento ela não sabia se deveria correr até ele ou esperar que a visse enquanto se aproximava. Apenas parou e olhou o filho por alguns minutos.

Quando viu a mãe, Jorge se levantou e correu até ela. Os dois se abraçaram por muito tempo. O garoto chorou e encarou a mãe.

- Filho, eu senti tanto sua falta...

- A vida inteira eu senti tua falta, mãe. Esses dois meses perto dos quinze anos não foram nada.

- Eu sei que eu não estive sempre presente, Jorge, mas eu fui uma mãe tão carinhosa, poxa!

- Não é a mesma coisa.

- Olha, filho, nunca é tarde pra tentar melhorar. Eu precisei passar dois meses num lugar massacrado pra encarar a minha vida de frente. E a minha vida tá bem mais massacrada do que o Paquistão.

Jorge começou a rir do que a mãe acabara de dizer. Eliane, meio sem jeito, continuou.

- Eu praticamente perdi a minha família, mas eu quero recomeçar tudo. Voltei de lá me sentindo uma recém-formada. Com quase 40, mas me sentindo no início de tudo.

Jorge riu novamente.

- Caraca, mãe! Hoje tá demais, para com isso!

- Eu tô falando sério, filho!

- Eu sei... Independente de tudo, tu é minha mãe e sempre vai ser. Só achei melhor vir morar com meu pai pra não ficar tanto tempo sozinho. Mas se tá difícil pra você, eu volto pra lá contigo.

Eliane sorri para o filho e começa a acariciar seus cabelos.

- Não queria ficar sozinho mas tá aqui em Geribá, sem ninguém... Ô meu filho, volta sim que vai me fazer a mãe mais feliz do mundo! E eu prometo que vou ser companheirona, não vou te deixar na mão nunca mais.

- Só me dá um tempo, mãe. E eu volto pra casa, deixa eu ficar um pouco com ele e logo eu volto, certo?

- Combinado filho, combinado.

Os dois se abraçaram.

- Te amo, mãe.

- Também te amo filho, muito!

Chegando em seu apartamento, Eliane olhou para o vazio do quarto de Jorge, mas dessa vez não sentiu tristeza. Agora, a perspectiva era outra. O quarto não tinha móveis, mas iria ter novamente. Em breve, o filho estaria ali com ela.

A sensação de esperar pela volta de Jorge era como uma gravidez. Era assim que Eliane se sentia, grávida do mesmo filho. Mas dessa vez ela poderia ser mais presente. Se sentir novamente mãe.

- Agora sim eu vou ser mãe! Sim, mãe!

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