terça-feira, 7 de janeiro de 2014

Visita enfurecida

---------------------------------------------------------------------------------------------------------------------- Notícia: Vândalos invadem Cemitério do Araçá e destroem estátuas e lápides

Fonte: G1 
Data: 06/01/14
Nível do conto: 1 (Ver tabela da coluna à direita)
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Joana ia a passos largos, mas não perdia a leveza que adquiriu em sua juventude. Carregava seus 68 anos como se fosse uma atriz bem jovem que fora caracterizada para viver o papel de senhora. “A culpa é de Cacilda! Aprendi com ela....”,  dizia com um sorriso arrebatador que lhe espremiam os olhos. E quem a indagava sobre a tal Cacilda, ela esclarecia que era “aquela que não viu Godot chegar”.


Atravessando o portão principal do cemitério Araçá, Joana se embrenhava por entre os túmulos com passos ensaiados de um antigo ritual. Seguia com algumas margaridas embrulhadas numa folha de papel e ia deixando seu “bom dia” ou “boa tarde” aos seus entes que partiram; começava pelo tio que se foi lá pelas épocas de 80 e terminava com uma reverência ao mais recente - seu marido. A ordem era sempre a mesma, e ia da dor que virou saudade até a saudade mais ressente que ainda insistia em doer um pouquinho. O bom é que Joana demonstrava entender e respeitar o fato de que as coisas são feitas para serem desse jeito.


De longe, os olhares admirados e enrugados do senhor Freitas, o coveiro, observavam aquela romaria solitária e cheia de ternura. Eram tantos visitantes por ali - os saudosos e os forçados - mas nenhum era como aquela mulher cheia de vida. Naquele momento, Freitas se lembrou de um incidente e sabia que o fato poderia afetar Joana. Ela, que acabava de jogar um beijo em direção ao jazigo do esposo, partia para seu último ato daquele ritual; já Freitas correu, pois pretendia poupá-la de uma certa indisposição.


- Joaninha, meu anjo! Bonita como sempre. - Disse Freitas chegando num vulto e impedindo que Joana sequer terminasse o passo seguinte.

- Senhor Freitas, convive tanto com os fantasmas que quase está me parecendo um.

- Desculpe-me se assustei a senhora. Acho que era saudade!

- Não poderemos papear agora. Tenho que levar as margaridas de Cacilda. Hoje estou bem atrasada!

- Não! - gritou Freitas quase ressuscitando os mortos.

- Não? - perguntou Joana estranhando aquela aflição do coveiro.

- É… Não! Digo… Antes, a senhora poderia me contar mais um pouco de suas histórias! As peças que a senhora assistia. Eram bonitas, não?

- Pensei que já havia lhe contado tudo, senhor coveiro…

- Mas e aquela última peça da senhorita Becker? Eu quero saber o que aconteceu!

- Ah sim… - disse Joana abaixando os olhos que deixavam escapar um pouco do brilho. - Bem... Ela, a Cacilda, estava linda no palco… Não linda por conta de um vestido, pois eram roupas de mendigo! Mas estava com um olhar romântico e dizia que esperava por um tal de Godot. Mas ela não pôde esperar! Saiu carregada do teatro, sob os olhares temerosos de todos. Ela morreu sem saber quem era Godot…Não é triste, senhor Freitas?

- Muito… Muito…

- Sim… Muito! Agora o senhor me dê licença que vou levar suas margaridas. Eu a prometi em 69. Quase que falho com a coitadinha.

- Não! - gritou Freitas novamente e segurando os braços de Joana que levou outro susto. - A senhora não pode!

- Por que não posso? Oras… Acho que o senhor está começando a esclerosar. Me solte que irei ver a senhorita Becker!

- Aconteceu algo, Joaninha…

- O que foi? Diz!


Os olhos de Joana se arregalaram pesados em direção ao Freitas que tremia as mãos enquanto buscava palavras. Ele supunha que tinha algo nada bom para dizer à ela, então era preciso inventar algo menos terrível do que aquilo que sabia. Mas era tão difícil mentir para Joana. Aquela alma ingênua não era merecedora de mentiras. A não ser que…


- Godot voltou! - soltou Freitas, percebendo que precisava de um pouco de saliva para molhar a garganta.

- Voltou? - perguntou Joana estarrecida e pálida.

- Sim, nesta noite. Veio aqui procurando por Cacilda e não sossegou até que eu o levasse até ela. E quando ele viu aquele vasinho bonitinho que a senhora deixou…

- Oh não… O que ele fez?

- Quebrou! Jogou no chão num ciume danado. Não acreditou quando eu disse que havia sido a senhora.


Joana não conseguia se acalmar. Estava tão atordoada com a notícia do coveiro e se sentia culpada. Passou tanto tempo pedindo que Cacilda  Becker não desistisse de esperar por Godot que, quando ele veio… "Oras! Estraguei tudo…" pensava pesarosa.


Mas Joana era um senhora astuta. Não cairia facilmente naquela história fajuta do Freitas. Olhou para ele como quem olha um réu, e se esquivou rapidamente em busca do túmulo da atriz que tanto admirava. Chegando lá, encontrou os cacos de um vaso antigo de flores que havia deixado alí. Olhou ao seu redor e percebeu um estrago tremendo por toda parte. Aquilo a enfureceu.


- Esse Godot tava bem revoltadinho, hein. Veja só o estrago!

Dando de ombros, Joana torceu o nariz e saiu sem se preocupar com as margaridas que haviam caído no chão. Freitas notou que ela nem fez o mesmo percurso de sempre. Ele sentiu medo de que aquilo poderia significar um adeus, mas não tinha muito o que fazer… Ele sabia que se contasse para ela que tudo aquilo foi obra de vandalismo na madrugada anterior, dificilmente Joana iria acreditar.

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